quinta-feira, 3 de julho de 2014

Público e privado no país do futebol


Sei que está todo mundo antenado com o jogo do Brasil de amanhã. Sei também que notícias que não sejam sobre futebol ou catástrofe não terão a mínima audiência nas redes sociais e na mídia.

Mas recebi notícia enviada pelo meu amigo Daniel Cara (Campanha Nacional pelo Direito à Educação) dando conta de que os setores empresariais ficaram muito animados com a possibilidade de expansão do financiamento estudantil alcançar o mestrado e doutorado à distância e também o EAD de graduação.

Depois de fazer uma leitura atenta resolvi identificar as partes do Plano Nacional de Educação que mais alegraram o setor privado. E esta busca aumentou as minhas preocupações, principalmente por que as fronteiras entre o que é público e o que é privado na educação estão se desfazendo numa velocidade assustadora.

 A primeira questão relevante estás justamente no cerne da principal polêmica ocorrida na tramitação do PNE e se materializa na contradição entre o teor da Meta 20 (investimento público para a educação pública) e o que está escrito no parágrafo 4º do artigo 5º, onde são enumerados todos os componentes de investimentos públicos que devem ser contabilizados para alcançar a Meta 20. Para a lei do PNE vale contabilizar?

 
1. Os recursos aplicados na forma do art. 212 da Constituição Federal e do art. 60 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias;

2. Os recursos aplicados nos programas de expansão da educação profissional e superior, inclusive na forma de incentivo e isenção fiscal, as bolsas de estudos concedidas no Brasil e no exterior, os subsídios concedidos em programas de financiamento estudantil

3. E o financiamento de creches, pré-escolas e de educação especial na forma do art. 213 da Constituição Federal.

 O governo federal conseguiu inserir como investimento educacional tudo que distintos governos de distintas formas oferecem de subsídios e incentivos à iniciativa privada. Além de uma evidente manobra contábil, a qual facilita chegar aos 10% do PIB sem fazer todo o esforço necessário, esta redação é uma clara sinalização dos caminhos que estão sendo e que serão trilhados pelo governo federal e incentivados para que governos estaduais e municipais também o sigam: ao invés da oferta direta, os entes federados podem optar por "parcerias" com o setor privado.

E esta indicação está presente também na Estratégia 1.7, que estimula a "oferta de matrículas gratuitas em creches certificadas como entidades beneficentes de assistência social na área de educação com a expansão da oferta na rede escolar pública". E sendo a educação infantil baixa cobertura e forte presença privada, o texto reforça o caminho privado (conveniamento) para a expansão prevista na Meta 01.

Igual indicação pode ser lida na Estratégia 11.6, onde está dito que deve-se "ampliar a oferta de matrículas gratuitas de educação profissional técnica de nível médio pelas entidades privadas de formação profissional vinculadas ao sistema sindical e entidades sem fins lucrativos de atendimento à pessoa com deficiência, com atuação exclusiva na modalidade". este setor já é expressivo e está sendo turbinado via Pronatec. E mais, a estratégia 11.7 oferece nova fonte de viabilização da expansão privada via "oferta de financiamento estudantil à educação profissional técnica de nível médio oferecida em instituições privadas de educação superior".

No ensino superior, onde esta política é amplamente difundida também encontramos a reafirmação da mesma diretriz.

Tanto no ensino profissionalizante quanto no ensino superior a vontade do governo de crescer a matrícula via "parcerias" com o setor privado foi mitigada com a permanência de percentuais mínimos de participação pública na expansão das duas etapas, textos que sofreram forte oposição do governo.

 A batalha entre público e privado não começou na elaboração e votação do PNE e tampouco terminou com sua sanção. Se não fosse a forte mobilização social a vitória do setor privado teria sido mais profunda. Mas ficou evidente que suas concepções conquistaram corações e mentes da maior parte dos gestores brasileiros e dos principais quadros dos três maiores partidos brasileiros (PT, PMDB e PSDB).

 

quarta-feira, 2 de julho de 2014

A próxima batalha


A sanção da Lei nº 13.005, que estabelece o Plano Nacional de Educação encerra um importante capitulo do planejamento educacional para a próxima década. Porém, o próximo ano será decisivo para saber se o PNE se tornará referência para as ações educacionais dos entes federados ou não.

O artigo 8º da lei estabelece que os Estados, o Distrito Federal e os Municípios deverão elaborar seus correspondentes planos de educação, ou adequar os planos já aprovados em lei, em consonância com as diretrizes, metas e estratégias previstas no PNE, no prazo de 1 (um) ano contado da publicação da Lei. Ou seja, até final de junho de 2015 será necessário amplo esforço de elaboração de planos estaduais e municipais.

A necessidade de detalhar as tarefas de cada ente federado é fundamental para o sucesso do novo plano. Esta foi uma das deficiências detectadas no plano anterior, visto que o texto não havia estabelecido prazo para aprovação de planos locais e sem eles não é possível identificar com clareza a ordem de grandeza da tarefa de cada município ou cada Estado.

Podemos exemplificar esta necessidade. No Distrito Federal foi anunciada a erradicação do analfabetismo, ou seja, não é necessária nenhuma medida prática para cumprir a Meta 09. Mas, por outro lado, esta unidade da federação possui baixa cobertura escolar de zero a três anos e precisará grande esforço para cumprir a Meta 01.

A Lei do PNE, no parágrafo segundo do artigo 8º anotou de forma acertada que o processo de elaboração e adequação dos planos de educação dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, devem contar com ampla participação de representantes da comunidade educacional e da sociedade civil. De nada adiantará encomendar planos para consultorias especializadas em tal tarefa. A participação social foi decisiva para que o texto nacional fosse melhor e será fundamental para mobilizar governos na direção do cumprimento das metas e estratégias aprovadas.

A elaboração dos planos estaduais e municipais pode ser também uma bela oportunidade para elevar a capacidade técnica da gestão educacional. Um plano exige um bom diagnóstico da educação local, quesito ausente em muitos lugares. Exige pensar a gestão de forma mais longa, saindo do imediatismo tão presente. E exige investir na qualificação técnica das equipes locais.

Em uma federação tão desigual quanto a nossa e cuja educação tem alto grau de descentralização no seu provimento, a elaboração ou adequação de planos estaduais e municipais é uma batalha decisiva para que o mesmo se torne ações concretas, materializadas de forma proporcional às dificuldade e capacidades de cada ente federado.

terça-feira, 1 de julho de 2014

Quem realmente influenciou o texto do PNE


A tramitação do Plano Nacional de Educação pode servir para estudos sobre o poder de incidência política do que se denomina de sociedade civil organizada. Mas para isso vale primeiro anotar algumas definições sobre o que estamos chamando de sociedade civil neste post.

Tudo que não é Estado pode, em termos teóricos, ser arrolado como sociedade civil. Ou seja, um conceito por demais amplo para definir que proposições e interesses mobilizaram atores sociais para influenciar o PNE. Com este conceito tanto posso estar falando de uma articulação de sindicatos, de organizações estudantis ou de fundações privadas vinculadas ao sistema bancário. E certamente o que cada um desses atores defenderiam em um plano educacional serão distintas.

Podemos dizer que pelo menos quatro tipos de articulações da sociedade civil tentaram incidir na tramitação do plano:

1º. Uma rede de entidades populares, sindicais, estudantis, de ONGs e de gestores municipais denominada Campanha Nacional pelo Direito à Educação.

2º. Uma rede de organizações empresariais denominada Todos pela Educação.

3º. Um conjunto nem sempre articulado de entidades civis e religiosas vinculadas ao atendimento educacional aos deficientes.

4º. Uma articulação sindical e popular em torno do Plebiscito por 10% do PIB para a educação pública.

A Campanha Nacional teve forte incidência durante todo o processo de tramitação. Na verdade sua influência já se fez sentir durante a realização da CONAE. Uma das evidências desta influência foi a aprovação do Custo Aluno-Qualidade como referência para o financiamento educacional na referida Conferência e a capacidade que teve em pautar tal discussão durante todo o processo.

Na maior parte dos momentos os interesses da Campanha Nacional estiveram em lado opostos aos defendidos pelo governo, tornando esta rede uma espécie de contraponto, credenciando a mesma como principal interlocutora dos movimentos sociais. Tal capacidade foi reconhecida pelos relatores da matéria na Câmara e no Senado. Foi de iniciativa desta rede de entidades um conjunto bem variado de emendas que foram incorporadas ao texto final, com destaque para a aprovação de 10% do PIB para a educação pública, a implementação do CAQ com auxílio da União e as referências explícitas a participação pública nas metas 11 e 12.

O debate sobre o percentual do PIB foi efetivamente polarizado por esta rede. A nota técnica que foi lançada em 2011, as audiências públicas que participou e a capacidade de aglutinar entidades acadêmicas em torno de suas proposições são provas desta incidência.

O Movimento Todos pela Educação também trabalhou para ter incidência na tramitação. Tiveram a vantagem de haver similaridades entre suas proposições e as ideias dominantes no governo, especialmente as que diziam respeito a dar primazia no texto a avaliação em larga escala de desempenho com medida de qualidade e o aprofundamento de “parcerias” entre o setor público e privado na prestação dos serviços educacionais. Assim, é difícil saber o quanto estas propostas prevaleceram devido a sua articulação ou devido ao peso institucional e político do governo sobre os parlamentares. Em vários momentos a sua pauta conseguia transitar entre a base governista e a base parlamentar da oposição conservadora. Apesar destas características não é possível afirmar que o texto sofreu forte influência de sua atuação sobre os parlamentares, estando muito distante do que o jornalista Nassif afirmou recentemente.

Já o conjunto de entidades que trabalham com o atendimento de deficientes mostrou, mesmo que não de forma unificada, uma forte capacidade de influenciar os parlamentares na pauta especifica que os mobiliza, ou seja, no embate entre atendimento inclusivo ou exclusivo. Esta capacidade de influenciar fica evidente nas emendas formuladas e na polarização que conseguiram promover acerca da redação da Meta 4. Apesar desta força, nos demais pontos do PNE este agrupamento não teve incidência relevante.

O quarto grupo, que se formou no início da tramitação em torno da bandeira dos 10% do PIB e que promoveu um plebiscito sobre o tema, em que pese abraçar uma das principais bandeiras em debate, teve fraca incidência no processo de tramitação. Certamente a resistência em apresentar emendas e a dificuldade de fazer ações conjuntas com outros grupos contribuiu para este isolamento.

Além dos quatro grupos podemos afirmar também que entidades sindicais, como a CNTE e estudantis, como a UNE, tiveram também individualmente alguma incidência, especialmente nos temas afeitos às suas bases, mas seu papel foi mais relevante quando somaram esforços com articulações mais amplas. A batalha pelos 10% do PIB conseguiu unir amplos setores populares e estudantis, por exemplo.

Destaco que em vários momentos a representação institucional dos gestores estaduais e municipais se fez presente. A participação dos gestores municipais junto a Campanha tornou mais forte a incidência deste segmento. O CONSED ficou isolado no fogo cruzado entre governo federal e sociedade civil. Entretanto, a pauta especifica federativa poderia ter tido por parte das duas representações um peso proporcional a importância do tema.

Vale anotar que na reta final os setores fundamentalistas, que estiveram entrincheirados na Comissão de Direitos Humanos da Câmara se mobilizaram para retirar do texto qualquer referência ao debate de gênero, mas fora deste tema não tiveram incidência digna de nota.

A explicação de uma parte significativa do texto deve ser buscada na força (ou na fraqueza) da sociedade civil em influenciar os parlamentares e pressionar o governo. A força esteve presente nos momentos em que tal mobilização representou um contraponto progressista na redação contra posições conservadoras do governo ou junto com o governo batalhando contra retrocessos fundamentalistas. E a fraqueza se fez presente quando tais segmentos não conseguiram distinguir os alinhamentos políticos partidários de suas lideranças dos interesses concretos de suas bases.